[Na sequência de publicações do livro “O Inferno existe”, de autoria do Padre André Beltrami, SDB, trago-lhes o quarto capítulo desta obra, publicada em 1897].
CAPÍTULO IV
Horrendos suplícios do inferno
Nenhuma língua humana é capaz de exprimir os tormentos atrozes daquele lugar de desespêro. Como descrever aquêle fogo medonho aceso pela ira de Deus? os remorsos cruéis que dilaceram o mísero preceito? a eternidade sem fim, com o terrível sempre e o terrível nunca? Diz Santo Agostinho que o fogo da terra comparado com o do inferno, parece um fogo pintado; e S. Vicente Ferrer diz que em confronto com aquêle, o nosso é frio.
Gastemos embora páginas e livros inteiros falando do inferno, acumulemos males sôbre males, sofrimentos sôbre sofrimentos, desgraças sôbre desgraças, chamemos em nosso auxílio as fantasias fecundas dos poetas, para idear penas atrozes, peçamos aos tiranos da História as torturas que inventaram para seviciar as suas vítimas e, apesar de tudo isso, chegaremos à conclusão de que infinitamente maiores são os suplícios do inferno.
Santa Tereza foi um dia arrebatada em êxtase e levada ao inferno para ver o seu lugar, caso não se emendasse de certo defeito. Ela mesma conta em sua autobiografia:
“Estando um dia em oração, fui transportada, sem saber como, em corpo e alma, ao inferno. Compreendi que Deus queria mostrar-me o lugar que ocuparia, se não mudasse de vida. Não tenho palavras que possam dar uma pequena idéia desse tormento incompreensível. Sentia em minha alma um fogo que me devorava e o corpo sofria dores insuportáveis. Dúrante minha vida passei por duros sofrimentos, mas, nem se comparavam com os que tive naquela ocasião; e ainda êsses subiam de ponto, ao pensar que seriam eternos e sem o menor alívio. Mas, apesar de as torturas do corpo serem atrozes, não tinham comparação com as agonias da alma. Ao mesmo tempo, sentia-me queimar e partir em pedaços, sofria tôdas as angústias da morte e os horrores do desespêro. Num raio de esperança e de consolação naquela moradia, aí se respira um odor pestilencial, que sufoca; nem um raio de luz, mas tudo são trevas da mais densa escuridão; contudo, oh! mistério, mesmo naquele escuro se distingue o que de mais penoso há para a vista. Em suma, tudo o que ouvi dizer ou li sôbre as penas do inferno é insignificante em confronto com a realidade; entre aquelas penas e estas há a mesma diferença entre uma pessoa e o seu retrato. Ai! o fogo dêste mundo por mais ardente que seja, é como o fogo pintado, comparado com aquêle que atormenta os réprobos no inferno. Há dez anos que tive esta visão, mas estou ainda agora tão espantada, que, enquanto escrevo, o mêdo gela-me o sangue nas veias. Em meio às provocações e dores que tenho, trago à mente esta visão e de aí tiro fôrça para tudo suportar”.
Vicente de Beauvais, no livro 25 de sua História, refere o seguinte fato, acontecido pleno ano 1000. Dois libertinos fizeram uma combinação: o primeiro a morrer viria à terra participar ao companheiro em que estado se achava. Morreu um deles, e Deus permitiu aparecesse ao amigo: era horrendo, parecia sofrer duramente e suava em bicas. Enxugou a fronte com a mão e deixou cair uma gota de suor no braço do companheiro, dizendo-lhe:
– Eis qual é o suor do inferno; dêle terás um vestígio até à morte.
E assim foi, pois aquêle suor infernal queimou-lhe o braço, penetrando na carne com dores inauditas. Bom para êle que soube aproveitar-se de tão terrível lição e retirou-se para o convento.
Em 1873, Nova Iorque foi teatro de um incêndio, cujas circunstâncias apresentam a imagem do inferno. O Circo Baunum foi assaltado pelo fogo; tigres, ursos, leões e outras feras foram queimadas vivas nas suas jaulas. À medida que o fogo se propagava, crescia o desespêro das feras, sobretudo os tigres e ursos tornavam-se cada vez mais furiosos. Atiraram-se com supremo esfôrço contra as grades, já incandescentes, da prisão, e eram rechaçados quais massas inertes, para de novo se arrojarem contra o insuportável obstáculo que os aprisionava. Os rugidos dos leões, os urros dos tigres e o aulidos das outras feras se misturavam formando um som pavoroso, que parecia reproduzirem aquêle que devem ouvir os condenados no inferno. Mas as notas deste tétrico concêrto aos poucos foram-se enfraquecendo, até que, quando o leão soltou o último urro, ao medonho alarido sucedeu o silencio da morte. Imaginemos, agora, nestas jaulas de ferro candente, não as feras, mas homens; e homens que em vez de morrerem no fogo continuam a viver, e teremos uma idéia do inferno, idéia, aliás, muito imperfeita.
A história registrou, para perpétua execração, as truculências de alguns tiranos, que mais do que homens pareciam monstros. Fálaris, tirano de Siracusa, confeccionou um touro de bronze para prender dentro os rebeldes e fazê-los morrer a fogo lento, aceso ao redor. Quem pode descrever os espasmos do supliciado? Gritava, debatia-se naquelas estreitas paredes, que se tornavam candentes e tormentos indescritíveis!… Todavia, essas penas terminavam; o condenado terá suplícios infinitamente maiores e por tôda a eternidade.
Nero mandava que se cobrissem os corpos dos cristãos com pixe e outros combustíveis, e depois, colocados nos postes, ao longo das alamedas, eram acendidos à tarde, para iluminar, enquanto êle passeava no coche, insultando-os bàrbaramente nos padecimentos. Maxêncio amarrava as suas vítima a cadáveres, rosto com rosto, tronco com tronco, membros com membros, e as deixava nesse horrível estado até que o mau cheiro das carnes corrompidas lhes acabasse com a vida. Astiáges, rei da Armênia, condenou S. Bartolomeu Apóstolo a ser esfolado vivo. Não menos horrível o suplício a que foi submetido o diácono S. Lourenço. Estenderam-no sôbre uma grelha e por baixo espalharam brasas, de maneira que aos poucos fosse sentindo os ardores e mais longa e vivamente durasse o tormento. Cozida uma parte do corpo, voltaram-no do outro lado, para que cada membro tivesse seu sofrimento; e assim neste lento e atroz martírio, rendeu a alma a Deus.
São talvez êsses os suplícios do inferno? Qual! apenas a sombra, uma pálida idéia.
Fala-nos o Padre Nierenberg de um jovem que levava uma vida aparentemente cristã, mas odiava a um inimigo; e conquanto frequentasse os Sacramentos, nutria para com êle sentimentos de vingança, que Jesus Cristo obrigava depor.
Morrendo, apareceu ao pai, todo envolvido em chamas, e disse-lhe que se condenara por não ter perdoado ao seu inimigo, e chorando exclamou:
– Ah! se tôdas as estrêlas do céu fossem como línguas de fogo, não traduziriam os tormentos que sofro.
Os dois fatos seguintes se referem pròpriamente ao fogo do purgatório, mas não vêem fora de propósito, já que os teólogos afirmam que o mesmo fogo que atormenta os condenados no inferno, purifica também as santas almas do purgatório, e que o purgatório é um inferno temporário.
Na vida de Frei Estanislau Chosca, dominicano polonês, lê-se que um dia, quando estava rezando pelos finados, viu uma alma tôda devorada pelas chamas. Compreendeu que se tratava de uma alma do purgatório que implorava suflágios, e a interrogou se aquêle fogo era mais penetrante que o nosso.
– Ai de mim! respondeu a mísera, todo o fogo da terra, comparado com o do purgatório é como um sôpro de ar fresquíssimo.
– Mas, isto é impossível! exclamou o frade. Desejaria mesmo experimentar, com a condição de que isto aproveite para me fazer descontar aqui uma parte das penas que terei de sofrer, um dia, no purgatório.
– Nenhum mortal, replicou então aquela alma, poderia suportar-lhe a mínima parte, sem morrer no mesmo instante, se Deus não o sustentasse. Se queres converter-te, estende a tua mão.
O dominicano, em vez de intimidar-se ofereceu a mão: e o defunto deixou cair sôbre ela uma gota de suor. Estanislau desmaiou no mesmo instante, soltando gritos agudos. Acudiram logo os frades assustados e o encontraram desfalecido e com a mão chagada. Levado para cama e medicado, recobrou os sentidos; mas não se levantou mais, sempre atormentado por terríveis dores causadas pela chaga na mão; e morreu depois de um ano, durante o qual não cessou de exortar os irmãos à penitência para evitarem os rigores da justiça divina.
A aparição que estou para referir é narrada na vida de S. Domingos, escrita por Fernando de Castelha, e comprovada por um profundo sinal deixado numa mesa.
Em Zamorra, cidade da província de Leão, na Espanha, vivia num convento de Dominicanos um bom religioso, ligado em santa amizade com um Franciscano, homem como êle, de grande virtude.
Um dia que se entretinha sôbre coisas espirituais, prometeram recìprocamente que o primeiro a morrer, se Deus lho permitisse, apareceria ao outro, para informá-lo da sorte alcançada no outro mundo. (*Julgo prudente observar que não convém fazer tais acordos; ou pelo menos é preciso consultar o confessor.)
Morreu o Franciscano e, fiel à sua promessa, apareceu ao Dominicano, quando êste arrumava a mesa. Depois de tê-lo cumprimentado com extraordinária benevolência disse-lhe que estava salvo, mas, tinha, outrossim, ainda muito que sofrer por algumas pequenas faltas das quais não se tinha arrependido bastante em vida. Em seguida ajuntou: – “Nada existe sôbre a terra, que possa dar uma idéia das minhas penas”. E para que o Dominicano tivesse disto uma prova, estendeu a mão sôbre a mesa do refeitório, deixando na madeira a queimadura como se a mão fôra um ferro em brasa, tirado então da forja.
Imagine-se a comoção do Dominicano a este espetáculo!
A mesa guardou-se religiosamente em Zamora, até o fim do século XVIII, no qual as revoluções políticas a fizeram desaparecer, como a outras muitas relíquias piedosas de que era rica a Europa.
Até agora temos falado das penas do sentido; e que dizer das penas do dano? Que dizer da privação de Deus? A privação da vista de Deus é o que pròpriamente constitui o inferno. Não fazem o inferno as trevas, o mau cheiro, o alarido, o fogo; a pena que faz o inferno é a pena de ter perdido a Deus. Se Deus mostrasse a face aos condenados, êles não sentiriam mais nenhuma dôr, e o inferno seria um paraíso.
Apenas a alma rompe os vínculos do corpo, sente imediatamente que foi criada para Deus e se atira a Êle como uma flecha vôa para sua meta, como a agulha imantada livre do empecilho volta-se para o solo; mas, estando manchada com o pecado, será repelida e precipitada no inferno.
Um caçador fez uma vez esta experiência: amarrou o seu galgo com uma grande corrente, dentro do jardim murado, e depois soltou uma lebre. Apenas a viu, o cão avançou para adentá-la
mas é impedido pela corrente. Que raiva, vê-la correr pelo jardim e não poder apanhá-la! Ladra, gane, dana-se, morde a corrente para despedaçá-la, atira-se contra o animalejo que foge dum lado para outro. Fez tanto esfôrço que pouco depois caiu morto.
A alma tentará contínuamente lançar-se para Deus, para o qual foi criada, mas o pecado é aquela corrente que não a deixará sair das chamas cruéis.
Um virtuoso sacerdote, enquanto estava exorcizando um energúmeno, perguntou ao demônio que penas sofria no inferno. A resposta foi esta:
– Um fogo eterno, uma maldição eterna, uma raiva eterna e um desespêro cruel por não poder mais ver Aquele que me criou.
– Que farias para que te fosse concedido ver a Deus?
– Para vê-lo, mesmo por um instante, estaria pronto a sofrer num minuto tôdas as penas que devo sofrer em dez mil anos… Mas, vãos desejos, hei de sofrer sempre e não O tornarei mais a ver.
E foi tal o tormento e o desespêro com que pronunciou estas palavras, que deixou funda impressão naquelas que assistiam aos exorcismos.