Doutrina


Hoje eu recebi um e-mail que – a julgar pelo título – pensei se tratar de mais uma dessas leviandades que circulam na internet e que caem de pára-quedas na nossa caixa de entrada. O título da mensagem era: “Igreja Católica aceita livro psicografado de D. Hélder Câmara”. Incrédulo em relação à manchete estapafúrdia, pus-me a vasculhar se a tal obra “psicografada” existia mesmo. E, para minha surpresa, ela existe:

Aliás, embora eu não saiba precisar de quando é a primeira edição, vi que este livro já está no mercado há pelo menos 2 anos. Contudo, dado que algumas pessoas ainda andam confusas por causa dele, creio que seja válido tecer alguns comentários. Façamo-lo.

Segundo o e-mail – que recebi de um amigo – o resumo da história é o seguinte:

 […] foi lançado no mercado cultural um livro mediúnico trazendo as reflexões de um padre depois da morte, atribuído, justamente, ao Espírito Dom Helder Câmara, bispo católico, arcebispo emérito de Olinda e Recife, desencarnado no dia 28 de agosto de 1999, em Recife (PE).

O livro psicografado pelo médium Carlos Pereira, da Sociedade Espírita Ermance Dufaux, de Belo Horizonte, causou muita surpresa no meio espírita e grande polêmica entre os católicos. O que causou mais espanto entre todos foi a participação de Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo, que durante nove anos foi secretário de Dom Helder Câmara, para a relação ecumênica com as igrejas cristãs e as outras religiões.

E o e-mail continua. Não o transcreverei completamente aqui porque, além de extenso, julgo que seja desnecessário divulgar os excertos – para lá de toscos – da infeliz obra. Ainda segundo o e-mail que recebi, em algumas passagens do livro – por exemplo – D. Hélder afirma, através do médium Carlos Pereira, que a Igreja Católica cedo ou tarde teria que admitir a comunicação entre os mortos; reporta, ainda, que teve – em vida – algumas “experiências íntimas espirituais”; e conta que são muitos os padres que desejam se comunicar com o mundo dos vivos através da chamada “escrita mediúnica”. Bobagens mil… Bem, prescindindo destes detalhes inúteis e absurdos, passemos a comentar algumas coisas que, a meu ver, devem ficar bem claras em meio a toda essa história maluca:

i) Além de Marcelo Barros (que com esta sua atitude em nada me surpreende dado o seu histórico de desserviço à Igreja), outras figuras são mencionadas como sendo “pessoas ligadas à Igreja Católica”. São elas: o filósofo e teólogo, Inácio Strieder; e a historiadora Jordana Gonçalves Leão. Você não os conhece? Nem eu! Menos mal: se são pouco conhecidos, presume-se que causarão pouco escândalo.

ii) Marcelo Barros não representa a voz da Igreja. Nem da Igreja particular de Olinda e Recife (cujo Pastor é o Exmo. Revmo. D. Antônio Fernando Saburido) e muito menos da Igreja Universal, cujo governo foi confiado ao Sumo Pontífice, o Papa Bento XVI, gloriosamente reinante. Lamentavelmente, a voz de Marcelo Barros quase sempre ressoa em sentido contrário a tudo o que a Igreja anuncia e defende. Ele faz parte daquela tríade satânica apelidada de “BBB” (Frei Betto, Leonardo Boff e Marcelo Barros) cujo único objetivo parece ser o de minar a Igreja por dentro, como lobos em pele de cordeiro. Aliás, há algum tempo o arcebispo, D. Saburido, havia confiado a Barros a responsabilidade pela comissão arquidiocesana para o ecumenismo e o diálogo inter-religioso (!). Em uma rápida pesquisa no site da AOR, vi que – ao que parece – ele não ocupa mais esse cargo, tendo sido nomeado para o seu lugar o Fr. Tito Figuerôa, OC. Deo gratias!

 

iii) O magistério da Igreja é bastante claro com relação a inaceitabilidade da doutrina espírita – por total incompatibilidade com a fé cristã. Diz o Catecismo da Igreja Católica (grifos meus):

O espiritismo implica freqüentemente práticas de adivinhação ou de magia. Por isso a Igreja adverte os fiéis a evitá-lo (Parágrafo 2117)

§1013 A morte é o fim da peregrinação terrestre do homem, do tempo de graça e de misericórdia que Deus lhe oferece para realizar sua vida terrestre segundo o projeto divino e para decidir seu destino último. Quando tiver terminado o único curso de nossa vida terrestre, não voltaremos mais a outras vidas terrestres. “Os homens devem morrer uma só vez” (Hb 9,27). Não existe “reencarnação” depois da morte (Parágrafo 1013).

Portanto, atenção! Se forem à alguma dessas livrarias que se dizem católicas – do tipo Paulus, Paulinas, et catervae encontrarem essa obra (sim, a insensatez das livrarias e editoras é tamanha que elas são capazes de colocar na prateleira este tipo de fábula), não se iludam: trata-se de obra de cunho espírita e portanto: falsa, não cristã e anti-católica.

Para saber mais sobre a incompatibilidade da doutrina espírita com a doutrina católica, leia isto e assista isso.

[Na sequência de publicações do livro “O Inferno existe”, de autoria do Padre André Beltrami, SDB, trago-lhes o sétimo capítulo desta obra, publicada em 1897].


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CAPÍTULO VII

A vida futura é um programa insolúvel, um programa talvez invencível

São as fórmulas estereotipadas que a impiedade põe na bôca dos que seguem a estrada do vício. No entanto, como se enganam! O problema da vida futura foi plenamente resolvido pela revelação divina e não nos deixa a menor dúvida. Não um homem sujeito a erros, mas o mesmo Deus nos deu a conhecer o que nos espera depois da morte, Deus, a verdade por essência, que não pode enganar-se, nem enganar.

Mas suponhamos por um instante que haja alguma dúvida, e que a existência dos eternos suplícios seja tão somente provável; eu pergunto a quem tem um pouquinho de juízo, se alguém apoiando-se num talvez, pode expôr-se ao perigo de cair naquele fogo terrível. Não é verdadeira loucura arriscar a salvação eterna? Não conviria até neste caso fazer penitência para evitar o perigo provável de ser infeliz para sempre? Não seria prudente o caminho mais seguro?

Dois incréus entraram um dia na cela dum anacoreta e vendo uns instrumentos de penitência, perguntaram-lhe porque vivia assim tão austeramente.

– Para merecer o paraíso, respondeu o anacoreta.

– Bom Padre, lhe disseram êles sorrindo, V. R. sairá logrado se depois da morte não houver mais nada.

E o santo homem olhando-os com ar de compaixão:

– Maior o logro de vossas senhorias, se depois da morte houver alguma coisa!

Narra o Padre Schouppe, que um jovem, pertencente a uma família católica da Holanda, por causa de leituras perigosas, teve a desgraça de perder o tesouro da fé e cair em completa indiferença; pelo que seus pais, e especialmente sua mãe, mulher de grande piedade, estavam tristíssimos. Debalde lhe repetia, qual nova Mônica, as mais graves verdades da nossa Fé, em vão o exortava com as lágrimas nos olhos a volta a Deus; êle se torna surdo e insensível a tudo.

Mas, só para agradar a mãe, resolveu passar uns dias numa casa religiosa para fazer retiro espiritual, ou, como êle mesmo dizia, retirar-se um pouco para fumar mais sossegado. Ouvia muito distraidamente os sermões que se faziam aos retirantes; logo depois ia fumar, pouco se importando de meditar no que ouvira. Veio a meditação sôbre o inferno, que parecia ter êle ouvido como as outras, mas voltando para a cela, enquanto fumava como de costume, surgiu-lhe na mente, mau grado seu, essa reflexão:

– “Se de fato existe evidentemente será para mim… e afinal de contas, como sei que não existe? Devo confessar que não tenho nenhuma certeza a êsse respeito, que para estribar as minhas idéias não tenho senão um talvez. Isso de expôr-se por um talvez ao perigo de sofrer por tôda a eternidade é mesmo uma extravagância sem limites; se há tais néscios, não quero imitar.”

Dessas reflexões passa à oração; a graça penetra na sua alma, dissipam-se-lhe as dúvidas e levanta-se convertido.

[Na sequência de publicações do livro “O Inferno existe”, de autoria do Padre André Beltrami, SDB, trago-lhes o sexto capítulo desta obra, publicada em 1897].


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CAPÍTULO VI

Não voltou ninguém do outro mundo para nos dizer que existe a eternidade

Não há tal. Se consultardes a História, vereis como frequentes vezes Deus permitiu, em todos os tempos viesse alguém dizer-nos da existência das verdades que Ele revelou. Muito de indústria êsses doutores da impiedade omitem o estudo dos fatos; e depois sentenciam do alto de suas cátedras que nunca ninguém levantou a cabeça da sepultura para nos dizer que existe algo depois da morte.

A história da Igreja na Polônia registra um fato importantíssimo, sucedido em 1070, com Santo Estanislau, bispo de Cracóvia. Trata-se duma prodigiosa ressurreição, perante muita gente, numeroso clero e magistrados.

Boleslau, rei ímpio e cruel, movera contra o santo bispo Estanislau uma feroz perseguição; entre outras coisas, acirrou de ódio contra o Bispo os herdeiros de um Pedro Miles, que tinha morrido três anos antes, deixando para a Igreja uma de suas terras. Os herdeiros, certos do apoio do rei, processaram o santo, e tendo subornado ou intimidado as testemunhas, conseguiram que Estanislau fosse condenado à restituição do terreno. O santo, vendo que falhava a justiça dos homens, apelou confiantemente para a de Deus e conseguiu suspender a condenação, prometeu chamaria como testemunha o próprio testador que jazia havia três anos na sepultura. Com efeito, depois de três dias de jejum e orações, o santo Bispo se dirige com todo o clero à sepultura de Pedro Miles.

Aberto o túmulo, encontraram, como se previa, poucos ossos num monte de pó, e já os adversários se alegravam, certos da vitória. Mas o santo com voz majestosa ordena ao cadáver que ressuscite, em nome d‟Aquele que é ressurreição e vida; e num pronto aquêles ossos se aproximam, cobrem-se de carne, na presença de uma imensa multidão possuída de grande terror.

O Bispo tomou-o pela mão e o levou diante de Boleslau para certificar a verdade da doação feita, confundindo destarte o rei e os herdeiros. Perguntou-lhe depois se preferia voltar à sepultura ou viver ainda alguns anos na terra; êle respondeu que, conquanto pelos seus inúmeros pecados estivesse no purgatório, onde sofria muito, preferia tornar a morrer do que ficar nesta terra tão miserável em que poderia sempre ocorrer o perigo de se condenar eternamente. Suplicando as orações do santo bispo para se libertar logo do purgatório, foi levado processionalmente ao seu sepulcro, aí entrou e ficou no estado de antes.

Na vida de S. Bruno, fundador dos Cartuxos, lê-se a ressurreição momentânea de uma personagem respeitável para atestar diante de muita gente a própria condenação. París e tôda a França ficaram horrorizados com êsse acontecimento; foi, então, que Bruno temendo os juízos divinos retirou-se para a Cartuxa a fim de lavar vida austerríssima.

Morreu Raimundo Diocres, doutor de Sorbona, homem conceituadíssimo pela sua vasta ciência, não menos por uma aparência de virtude. Depois de três dias, o seu corpo, revestido das insígnias doutorais, foi transportado solenemente para ser sepultado; acompanhavam-no o colégio dos professores, grande número de estudantes e teoria de clero. As exéquias celebraram-se na catedral, revestida de luto, entre luzes e muitas inscrições que lembravam a insígne ciência e as virtudes do ilustre extinto. Mas quando o coro dos cantores chegou àquele trecho do ofício: Responde mihi: quantas habeo iniquitates et peccata; scélera mea et delicta ostende mihi; onde o santo Job roga a Deus lhe faça conhecer as suas culpas, o cadáver levantou a cabeça e féretro e com voz lastimosa exclamou: Por justo juízo de Deus sou acusado: dito isto, tornou a repousar a cabeça, como dantes.

Apoderou-se dos assistentes um terror geral, e resolveram deixar para o outro dia os funerais. Neste dia foi muito maior a concorrência; recomeçou-se o ofício, e ao chegar às mesmas palavras, tornou o cadáver a erguer a cabaça e a exclamar com voz esforçada e mais lastimosa: Por justo juízo de Deus estou julgado.

Subiu de ponto o pasmo e o espanto. Resolveram diferir a inumação para o terceiro dia. Nesta foi imenso o concurso; deu-se princípio ao ofício, como nos precedentes; quando se cantavam as mesmas palavras, levantou o defunto a cabeça, e em voz horrível e espantosa exclamou: Não careço de orações; por justo juízo de Deus estou condenado ao fogo eterno.

É fácil compreender a impressão que faria nos ânimos um acontecimento tão extraordinário. Achava-se Bruno presente a êste espetáculo; tão fortemente se emocionou com êle que, retirando-se horrorizado, resolveu deixar quanto tinha e enterrar-se em algum espantoso deserto para ali passar a vida entregue unicamente aos rigores da mortificação e da penitência. Parecia necessário um sucesso tão trágico para uma resolução tão generosa.

O nosso século foi também fecundo de aparições de além-túmulo e já narramos algumas. A que vamos agora narrar com as palavras de Monsenhor Ségur, foi confirmada por um sinal deixado numa porta, sinal êsse que até ora se conserva religiosamente. Quem não crê, pode ir ao lugar onde o fato se deu e interrogar as testemunhas oculares que ainda vivem. (*Aqui e em outros lugares o Autor fala de testemunhas ainda vivas, as quais podem ser consultadas: é bom notar que o Servo de Deus André Beltrami viveu no século XIX e o presente opúsculo foi escrito em 1897). Parece que Deus na sua bondade, como crescer da incredulidade e da libertinagem, aumenta os testemunhos das verdades terríveis do juízo e do inferno, para confirmar na fé os cristãos e preservá-los da impiedade.

A 4 de novembro de 1859, morreu de apoplexia fulminante no convento da Franciscanas de Foligno uma boa irmã, camada Teresa Gestas, que por muitos anos fôra mestra das noviças e ao mesmo tempo encarregada de superintender à pobre rouparia do convento. Nascera na Córsega em 1797 e entrara na Ordem em fevereiro de 1826; fôra supérfulo dizer que estava convenientemente preparada para a morte.

Doze dias depois, precisamente aos 16 de novembro, uma irmã, de nome Ana Felicidade, que a substituiria no cargo, subiu à rouparia e estava para entrar quando ouviu gemidos que pareciam vir do interior do quarto. Um tanto assustada, abriu a porta, ninguém! mas, ouviu novos gemidos e tão distintos que apesar de sua coragem comum, a irmã ficou com mêdo.

“Jesus! Maria! Gritou ela, que é isso?”

Não acabou de falar quando ouviu uma voz que dizia: – “Ó meu Deus, quanto sofro!”

A irmã, atônita, reconheceu a voz da irmã Teresa. Então o quarto se encheu de fumaça densa, e a sombra da irmã Teresa apareceu em ato de se dirigir para a porta arrastando-se ao logo da parede; e chagando à porta disse: – “Eis um sinal da misericórdia de Deus”; e assim falando, tocou com a palma da mão a porta e a deixou impressa em traço carbonizado; e desapareceu.

Irmã Ana Felicidade, toda nervosa, morrendo de mêdo, começou a gritar e pedir socorro. Correu uma de suas irmãs de hábito, outra, depois tôda a comunidade; fizeram-lhe roda, incomodadas, com os gritos e com o tresandar de madeira queimada. Irmã Ana contou o que tinha sucedido e mostrou a forma da mão da irmã Teresa, que era bem pequena; então aterrorizadas, mais que depressa foram a igreja para rezarem pela defunta, e pela mesma intenção passaram a noite na oração e na penitência, e na manhã seguinte receberam a Comunhão. A notícia espalhou-se fora de casa e diversas comunidades religiosas daquela cidade uniram suas orações às das Franciscanas.

No dia seguinte, 18 de novembro, irmã Ana Felicidade, entrando na cela para o repouso, ouviu que a chamavam pelo nome e reconheceu a voz de irmã Teresa; viu então aparecer um globo de luz, iluminando o quarto como se fôra meio-dia, e ouviu distintamente a voz de irmã Teresa, que jubilosa lhe falou: – “Morri numa sexta-feira, dia dedicado à paixão e numa sexta-feira vou para a glória: sêde forte no levar a vossa cruz, sêde corajosa no suportá-la; amai a pobreza; e com muito afeto ajuntou: – “adeus! adeus! adeus!” Dito isto, transfigura-se em uma nuvem leve, branca, deslumbrante, alteia-se para o céu e desaparece.

O bispo de Foligno e os magistrados da cidade procederam a um inquérito canônico para averiguar o fato, e no dia 23 de novembro, na presença de muitas testemunhas, aberto o túmulo de irmã Teresa reconheceram que o sinal gravado com o fogo na porta era plenamente conforme a mão da defunta. O resultado dêsse inquérito foi uma declaração oficial, a qual atestava a certeza e a autenticidade do que referimos. A porta com o sinal se conserva com veneração no convento para testemunhar a aparição.

[Na sequência de publicações do livro “O Inferno existe”, de autoria do Padre André Beltrami, SDB, trago-lhes o quinto capítulo desta obra, publicada em 1897].

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CAPÍTULO V

Eu não creio em nada

– Eu não creio em nada, dizia-me duma feita um dêsses doutores da impiedade, com empáfia.

– Como? Vós não credes em nada? repliquei. Então não credes na existência da América, da Oceania…

– Oh! Certamente que sim; queria dizer, não creio em nenhuma coisa sobrenatural.

– Mas, porque credes na existência da América e da Oceania, que nunca vistes?

– Tem graça! Creio porque o afirmam os geógrafos e muitas pessoas que perlustraram essas regiões.

– E se credes na existência de coisas que nunca vistes, só porque o dizem os homens, porque não credes na existência do inferno, do juízo, revelada pela palavra infalível de Deus, confirmada pela razão e proclamada pela voz de todos os povos?

O livre pensador deu de ombros e não soube responder; mas, nem por isso se converteu. Custava-lhe tanto deixar sua vida desregrada e praticar a virtude!

Como são dignos de compaixão êsses libertinos! Pretendem destruir o inferno, negando-lhe a existência; mas, quem nega uma coisa não consegue eliminá-la. Se eu negasse a existência da América ou da África, não conseguiria riscá-las da face do globo, mas subsistiriam, não obstante minha negação. Negai, negai quanto quiserdes a existência do inferno, que apesar disso o inferno continuará a existir e a queimar as suas vítimas, e um dia se abrirá para vós e vos sepultará naquelas chamas, se vos não corrigirdes de vossas desordens. A vossa fanfarrice e a vossa negação estulta não apagarão certamente aqueles ardores sempiternos, ao contrário, servirão para os aumentar e fazer-vos afundar mais naquele abismo. Quanto mais vos obstinardes na infidelidade e na negação do inferno, tanto mais acumulareis pecados e culpas para expiar na eterna prisão.

Uma ocasião, um infeliz, a quem se meteu na cabeça que não havia mais cárcere, nem tribunal, começou a roubar e praticar iniquidades. Avisado várias vezes pelos parentes e amigos, e ameaçado de prisão, replicava sempre que não havia mais cárcere nem tribunal.

Sabeis o que aconteceu? o que já se esperava: dois policiais o prendem; é processado e condenado às galés por tôda a vida.

Eis aí a história de todos os ímpios; abandonam-se aos vícios, acariciam as paixões, cometem pecados e mais pecados, dizendo que tudo acaba com a morte e, no entanto, caem no eterno abismo. E Santa Tereza viu que caíam em grande número, como flócos de neve em dias de inverno!

Monsenhor Ségur conta um fato bastante curioso, acontecido na escola militar de S. Ciro, nos últimos anos da Restauração.

O Padre Rigolot, capelão do estabelecimento, prègava um retiro espiritual aos alunos, que se reuniam por isso tôdas as tardes na capela, antes de subir ao dormitório. Uma das tardes, em que o bom do padre falara do inferno, terminada a função, tomou a lanterna e se retirou para o seu aposento; e quando abria a porta do quarto, percebeu que o chamava alguém que o seguia pela escada. Era um velho capitão de bigode grisalho e de maneiras pouco gentis.

– Desculpe, sr. Padre, lhe falou com ar de zombaria; V. R. fez-nos agora pouco um magnífico discurso sôbre o inferno. Mas se esqueceu de nos dizer se lá nós seremos cozidos, assados ou fritos. Poderia dizer-me?

O capelão, percebendo que se tratava de um zoilo, fitou-o sériamente, e depois enfiando-lhe sob o nariz a lanterna que trazia, respondeu com tôda a calma:

– Haveis de ver, sr. capitão.

Dito isto, fechou a porta; sem poder refrear o riso pela figura ridícula daquele estróina.

Não pensou mais nisso, mas daí por diante notou que o capitão fugia dêle.

Entretanto, veio a revolução de julho e extintas as capelanias militares, o Arcebispo de París nomeou o Padre Rigolot para outro cargo, não menos importante.

Passados quase vinte anos, o venerando sacerdote entretinha-se com os amigos numa tertúlia, quando um velho de bigode, branco, fazendo-se encontradiço, cumprimentou-o e perguntou se era o Padre Rigolot, ex-capelão da escola de S. Ciro. Obtida resposta afirmativa:

– Oh! Senhor padre, diz-lhe comovido o velho militar, permita-me que lhe aperte a mão e que exprima o meu reconhecimento; o senhor me salvou.

– Eu?! de que modo?

– Oh! não me conhece mais? Não se lembra do ocorrido naquela noite, que um capitão, instrutor da escola, a propósito de seu discurso sôbre o inferno, lhe fez uma pergunta estúpida e V. R., pondo-lhe a lanterna sob o nariz respondeu: – “Haveis de ver, capitão?” Aquele capitão sou eu; sabia que desde aquela ocasião suas palavras não me saíram mais da mente, como não me abandonou mais o pensamento que eu devia ir para o inferno. Lutei contra mim mesmo por dez anos; ao cabo dos quais, rendi-me a Deus, confessei-me e agora tornei-me cristão e cristão à militar, isto é, franco, sem respeito humano. A V. R. sou devedor de tanta ventura e folgo muito de poder encontrá-lo para manifestar-lhe o meu reconhecimento.

O Padre Bach, na vida de S. Francisco de Jerônimo, narra a triste sorte duma mulher incrédula que zombava do inferno e dos novíssimos. O fato não deixa nenhuma dúvida, pois foi juridicamente provado no processo de canonização do santo, e atestado com juramento por muitas testemunhas oculares.

No ano de 1707, S. Francisco de Jerônimo prègava, como de costume, nos arrabaldes de Nápoles, falando sôbre o inferno e os terríveis castigos reservados aos pecadores obstinados. Uma mulher insolente, morava na redondeza, aborrecida com aqueles sermões, que lhe acordavam no coração amargos remorsos, procurou molestá-lo com chascos e gritos, desde a janela de sua casa; uma vez, o santo lhe disse: – Ai de ti, filha, se resistes à graça! não passarão oito dias, sem que Deus te castigue.

A desaforada mulher não se perturbou por aquela ameaça e continuou a com suas más intenções. Passaram-se oito dias, e o santo foi prègar de novo perto daquela casa, mas desta vez as janelas estavam fachadas e ninguém o importunava. Os vizinhos que ouviam consternados lhe disseram que Catarina (tal era o nome daquela péssima mulher) tinha morrido de improviso, pouco antes.

– Morreu? disse o servo de Deus; pois bem, agora nos diga de que valeu zombar do inferno; vamos perguntar-lhe.

Os ouvintes sentiram que essas palavras o santo as pronunciara com inspiração, e por isso todos esperaram um milagre. Acompanhado da multidão subiu à sala, convertida em câmara ardente, e após breve oração, descobriu o rosto da morta e:

– Catarina, gritou, diz-nos onde estás!

A esta ordem, a defunta ergue a cabeça, abre os olhos, toma côr o seu rosto, e em atitude de horrível desespêro, profere com voz lúgubre estas palavras:

– No inferno! eu estou no inferno!

Imediatamente cai e volta ao estado de frio cadáver.

Eu estava presente ao fato, afirma uma das testemunhas que depuseram no tribunal apostólico, mas não saberia explicar a impressão que causou em mim e nos circunstantes; ainda hoje, passando perto daquela casa e olhando a tal janela, fico muito impressionado. Quando vejo aquela funesta moradia, parece-me ouvir a lúgubre voz: – No inferno! eu estou no inferno!

[Na sequência de publicações do livro “O Inferno existe”, de autoria do Padre André Beltrami, SDB, trago-lhes o quarto capítulo desta obra, publicada em 1897].

CAPÍTULO IV

Horrendos suplícios do inferno

Nenhuma língua humana é capaz de exprimir os tormentos atrozes daquele lugar de desespêro. Como descrever aquêle fogo medonho aceso pela ira de Deus? os remorsos cruéis que dilaceram o mísero preceito? a eternidade sem fim, com o terrível sempre e o terrível nunca? Diz Santo Agostinho que o fogo da terra comparado com o do inferno, parece um fogo pintado; e S. Vicente Ferrer diz que em confronto com aquêle, o nosso é frio.

Gastemos embora páginas e livros inteiros falando do inferno, acumulemos males sôbre males, sofrimentos sôbre sofrimentos, desgraças sôbre desgraças, chamemos em nosso auxílio as fantasias fecundas dos poetas, para idear penas atrozes, peçamos aos tiranos da História as torturas que inventaram para seviciar as suas vítimas e, apesar de tudo isso, chegaremos à conclusão de que infinitamente maiores são os suplícios do inferno.

Santa Tereza foi um dia arrebatada em êxtase e levada ao inferno para ver o seu lugar, caso não se emendasse de certo defeito. Ela mesma conta em sua autobiografia:

“Estando um dia em oração, fui transportada, sem saber como, em corpo e alma, ao inferno. Compreendi que Deus queria mostrar-me o lugar que ocuparia, se não mudasse de vida. Não tenho palavras que possam dar uma pequena idéia desse tormento incompreensível. Sentia em minha alma um fogo que me devorava e o corpo sofria dores insuportáveis. Dúrante minha vida passei por duros sofrimentos, mas, nem se comparavam com os que tive naquela ocasião; e ainda êsses subiam de ponto, ao pensar que seriam eternos e sem o menor alívio. Mas, apesar de as torturas do corpo serem atrozes, não tinham comparação com as agonias da alma. Ao mesmo tempo, sentia-me queimar e partir em pedaços, sofria tôdas as angústias da morte e os horrores do desespêro. Num raio de esperança e de consolação naquela moradia, aí se respira um odor pestilencial, que sufoca; nem um raio de luz, mas tudo são trevas da mais densa escuridão; contudo, oh! mistério, mesmo naquele escuro se distingue o que de mais penoso há para a vista. Em suma, tudo o que ouvi dizer ou li sôbre as penas do inferno é insignificante em confronto com a realidade; entre aquelas penas e estas há a mesma diferença entre uma pessoa e o seu retrato. Ai! o fogo dêste mundo por mais ardente que seja, é como o fogo pintado, comparado com aquêle que atormenta os réprobos no inferno. Há dez anos que tive esta visão, mas estou ainda agora tão espantada, que, enquanto escrevo, o mêdo gela-me o sangue nas veias. Em meio às provocações e dores que tenho, trago à mente esta visão e de aí tiro fôrça para tudo suportar”.

Vicente de Beauvais, no livro 25 de sua História, refere o seguinte fato, acontecido pleno ano 1000. Dois libertinos fizeram uma combinação: o primeiro a morrer viria à terra participar ao companheiro em que estado se achava. Morreu um deles, e Deus permitiu aparecesse ao amigo: era horrendo, parecia sofrer duramente e suava em bicas. Enxugou a fronte com a mão e deixou cair uma gota de suor no braço do companheiro, dizendo-lhe:

– Eis qual é o suor do inferno; dêle terás um vestígio até à morte.

E assim foi, pois aquêle suor infernal queimou-lhe o braço, penetrando na carne com dores inauditas. Bom para êle que soube aproveitar-se de tão terrível lição e retirou-se para o convento.

Em 1873, Nova Iorque foi teatro de um incêndio, cujas circunstâncias apresentam a imagem do inferno. O Circo Baunum foi assaltado pelo fogo; tigres, ursos, leões e outras feras foram queimadas vivas nas suas jaulas. À medida que o fogo se propagava, crescia o desespêro das feras, sobretudo os tigres e ursos tornavam-se cada vez mais furiosos. Atiraram-se com supremo esfôrço contra as grades, já incandescentes, da prisão, e eram rechaçados quais massas inertes, para de novo se arrojarem contra o insuportável obstáculo que os aprisionava. Os rugidos dos leões, os urros dos tigres e o aulidos das outras feras se misturavam formando um som pavoroso, que parecia reproduzirem aquêle que devem ouvir os condenados no inferno. Mas as notas deste tétrico concêrto aos poucos foram-se enfraquecendo, até que, quando o leão soltou o último urro, ao medonho alarido sucedeu o silencio da morte. Imaginemos, agora, nestas jaulas de ferro candente, não as feras, mas homens; e homens que em vez de morrerem no fogo continuam a viver, e teremos uma idéia do inferno, idéia, aliás, muito imperfeita.

A história registrou, para perpétua execração, as truculências de alguns tiranos, que mais do que homens pareciam monstros. Fálaris, tirano de Siracusa, confeccionou um touro de bronze para prender dentro os rebeldes e fazê-los morrer a fogo lento, aceso ao redor. Quem pode descrever os espasmos do supliciado? Gritava, debatia-se naquelas estreitas paredes, que se tornavam candentes e tormentos indescritíveis!… Todavia, essas penas terminavam; o condenado terá suplícios infinitamente maiores e por tôda a eternidade.

Nero mandava que se cobrissem os corpos dos cristãos com pixe e outros combustíveis, e depois, colocados nos postes, ao longo das alamedas, eram acendidos à tarde, para iluminar, enquanto êle passeava no coche, insultando-os bàrbaramente nos padecimentos. Maxêncio amarrava as suas vítima a cadáveres, rosto com rosto, tronco com tronco, membros com membros, e as deixava nesse horrível estado até que o mau cheiro das carnes corrompidas lhes acabasse com a vida. Astiáges, rei da Armênia, condenou S. Bartolomeu Apóstolo a ser esfolado vivo. Não menos horrível o suplício a que foi submetido o diácono S. Lourenço. Estenderam-no sôbre uma grelha e por baixo espalharam brasas, de maneira que aos poucos fosse sentindo os ardores e mais longa e vivamente durasse o tormento. Cozida uma parte do corpo, voltaram-no do outro lado, para que cada membro tivesse seu sofrimento; e assim neste lento e atroz martírio, rendeu a alma a Deus.

São talvez êsses os suplícios do inferno? Qual! apenas a sombra, uma pálida idéia.

Fala-nos o Padre Nierenberg de um jovem que levava uma vida aparentemente cristã, mas odiava a um inimigo; e conquanto frequentasse os Sacramentos, nutria para com êle sentimentos de vingança, que Jesus Cristo obrigava depor.

Morrendo, apareceu ao pai, todo envolvido em chamas, e disse-lhe que se condenara por não ter perdoado ao seu inimigo, e chorando exclamou:

– Ah! se tôdas as estrêlas do céu fossem como línguas de fogo, não traduziriam os tormentos que sofro.

Os dois fatos seguintes se referem pròpriamente ao fogo do purgatório, mas não vêem fora de propósito, já que os teólogos afirmam que o mesmo fogo que atormenta os condenados no inferno, purifica também as santas almas do purgatório, e que o purgatório é um inferno temporário.

Na vida de Frei Estanislau Chosca, dominicano polonês, lê-se que um dia, quando estava rezando pelos finados, viu uma alma tôda devorada pelas chamas. Compreendeu que se tratava de uma alma do purgatório que implorava suflágios, e a interrogou se aquêle fogo era mais penetrante que o nosso.

– Ai de mim! respondeu a mísera, todo o fogo da terra, comparado com o do purgatório é como um sôpro de ar fresquíssimo.

– Mas, isto é impossível! exclamou o frade. Desejaria mesmo experimentar, com a condição de que isto aproveite para me fazer descontar aqui uma parte das penas que terei de sofrer, um dia, no purgatório.

– Nenhum mortal, replicou então aquela alma, poderia suportar-lhe a mínima parte, sem morrer no mesmo instante, se Deus não o sustentasse. Se queres converter-te, estende a tua mão.

O dominicano, em vez de intimidar-se ofereceu a mão: e o defunto deixou cair sôbre ela uma gota de suor. Estanislau desmaiou no mesmo instante, soltando gritos agudos. Acudiram logo os frades assustados e o encontraram desfalecido e com a mão chagada. Levado para cama e medicado, recobrou os sentidos; mas não se levantou mais, sempre atormentado por terríveis dores causadas pela chaga na mão; e morreu depois de um ano, durante o qual não cessou de exortar os irmãos à penitência para evitarem os rigores da justiça divina.

A aparição que estou para referir é narrada na vida de S. Domingos, escrita por Fernando de Castelha, e comprovada por um profundo sinal deixado numa mesa.

Em Zamorra, cidade da província de Leão, na Espanha, vivia num convento de Dominicanos um bom religioso, ligado em santa amizade com um Franciscano, homem como êle, de grande virtude.

Um dia que se entretinha sôbre coisas espirituais, prometeram recìprocamente que o primeiro a morrer, se Deus lho permitisse, apareceria ao outro, para informá-lo da sorte alcançada no outro mundo. (*Julgo prudente observar que não convém fazer tais acordos; ou pelo menos é preciso consultar o confessor.)

Morreu o Franciscano e, fiel à sua promessa, apareceu ao Dominicano, quando êste arrumava a mesa. Depois de tê-lo cumprimentado com extraordinária benevolência disse-lhe que estava salvo, mas, tinha, outrossim, ainda muito que sofrer por algumas pequenas faltas das quais não se tinha arrependido bastante em vida. Em seguida ajuntou: – “Nada existe sôbre a terra, que possa dar uma idéia das minhas penas”. E para que o Dominicano tivesse disto uma prova, estendeu a mão sôbre a mesa do refeitório, deixando na madeira a queimadura como se a mão fôra um ferro em brasa, tirado então da forja.

Imagine-se a comoção do Dominicano a este espetáculo!

A mesa guardou-se religiosamente em Zamora, até o fim do século XVIII, no qual as revoluções políticas a fizeram desaparecer, como a outras muitas relíquias piedosas de que era rica a Europa.

Até agora temos falado das penas do sentido; e que dizer das penas do dano? Que dizer da privação de Deus? A privação da vista de Deus é o que pròpriamente constitui o inferno. Não fazem o inferno as trevas, o mau cheiro, o alarido, o fogo; a pena que faz o inferno é a pena de ter perdido a Deus. Se Deus mostrasse a face aos condenados, êles não sentiriam mais nenhuma dôr, e o inferno seria um paraíso.

Apenas a alma rompe os vínculos do corpo, sente imediatamente que foi criada para Deus e se atira a Êle como uma flecha vôa para sua meta, como a agulha imantada livre do empecilho volta-se para o solo; mas, estando manchada com o pecado, será repelida e precipitada no inferno.

Um caçador fez uma vez esta experiência: amarrou o seu galgo com uma grande corrente, dentro do jardim murado, e depois soltou uma lebre. Apenas a viu, o cão avançou para adentá-la

mas é impedido pela corrente. Que raiva, vê-la correr pelo jardim e não poder apanhá-la! Ladra, gane, dana-se, morde a corrente para despedaçá-la, atira-se contra o animalejo que foge dum lado para outro. Fez tanto esfôrço que pouco depois caiu morto.

A alma tentará contínuamente lançar-se para Deus, para o qual foi criada, mas o pecado é aquela corrente que não a deixará sair das chamas cruéis.

Um virtuoso sacerdote, enquanto estava exorcizando um energúmeno, perguntou ao demônio que penas sofria no inferno. A resposta foi esta:

– Um fogo eterno, uma maldição eterna, uma raiva eterna e um desespêro cruel por não poder mais ver Aquele que me criou.

– Que farias para que te fosse concedido ver a Deus?

– Para vê-lo, mesmo por um instante, estaria pronto a sofrer num minuto tôdas as penas que devo sofrer em dez mil anos… Mas, vãos desejos, hei de sofrer sempre e não O tornarei mais a ver.

E foi tal o tormento e o desespêro com que pronunciou estas palavras, que deixou funda impressão naquelas que assistiam aos exorcismos.

[Na sequência de publicações do livro “O Inferno existe”, de autoria do Padre André Beltrami, trago-lhes o terceiro capítulo desta obra]
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CAPÍTULO III

Testemunhas de Além-túmulo

Em sua infinita misericórdia, Deus, depois de haver revelado o dogma do inferno, tem permitido, de onde em onde, que alguma alma venha da eternidade para confirmar-nos a existência daquele lugar de penas. Tais aparições são mais frequentes do que comumente se crê; e quando são atestadas por pessoas idôneas e fidedignas, tornam-se fatos inegáveis, que se admitem como todos os outros fatos da história. Apresso-me, porém, a declarar que não entendo trazer êsses fatos como argumento principal e básico com que se demonstre e se estabeleça o dogma do inferno, porque êste nos é demonstrado pela palavra infalível de Deus; narro tais aparições sòmente para confirmar e elucidar essa verdade, e como argumento de salutar meditação.
Monsenhor Ségur, no seu áureo opúsculo sôbre o inferno narra três fatos, cada qual mais autêntico, acontecidos não faz muito tempo. O primeiro, diz ele, sucedeu quase em minha família, pouco antes da terrível campanha de 1812, na Rússia. Meu avô materno, o Conde Rostopkine, governador militar de Moscou, era intimamente relacionado com o general Conde Orloff, tão valoroso quanto ímpio.
Um dia, após a ceia, o conde Orloff e um seu amigo, o general V…, volteriano como êle, puseram-se a ridicularizar a religião e sobretudo o inferno:
– Mas…, disse Orloff, e se houvesse alguma coisa além do túmulo?
– Neste caso…, diz o general V…, o primeiro que morrer virá avisar o outro; de acôrdo?
– Pois não, responde Orloff.
E ambos prometeram seriamente não faltar à palavra.
Algumas semanas após, desencadeou-se um daquelas guerras que Napoleão sabia suscitar; o exército russo foi chamado às armas, e o general V… recebeu ordem de partir incontinenti para um pôsto de comando. Duas ou três semanas depois da partida de Moscou, quando meu avô se levantara, bem cedo, viu abrir-se bruscamente a porto do quarto e entrar o conde Orloff, com roupa de dormir, de chinelos, cabelo em desalinho, olhos esbugalhados, pálido como cera.
– Oh! Orloff vós aqui a esta hora? Neste traje? Que aconteceu?
– Meu caro, responde Orloff, eu perco a cabeça; vi o general V…
– Oh! Ele já voltou?
– Não, continua Orloff, atirando-se a um divã, não, não voltou, e é isto que me espanta.
Meu avô nada compreendia e procurava acalmá-lo.
– Contai-me, então, lhe disse, o que aconteceu e o que significa tudo isto.
Fazendo grande esfôrço para se acalmar, o conde Orloff contou o seguinte:
– Meu caro Rostopckine, não faz muito, o general V… e eu, juramos que o primeiro que morresse, viria avisar o outro se há de fato alguma coisa além do túmulo. Ora, pela madrugada, enquanto estava tranqüilo na cama, acordado, sem pensar no amigo nem no juramento, abre-se de repente o cortinado do meu leito e vejo, a dois passos de mim, o general V… de pé, desfigurado, com a mão direita no peito, e me fala: “Existe um inferno, e eu lá estou…” e desapareceu. Na mesma hora corri até cá; eu perco a cabeça! Que coisa estranha! não sei o que pensar!
Meu avô tranqüilizou-o como pôde: falou-lhe de alucinação, fantasia… que êle talvez estivesse dormindo… que às vêzes dão-se casos extraordinários, inexplicáveis… E procurava persuadí-lo com outros meios termos, que apesar de nada valerem, servem para consolar os céticos. Mandou preparar o coche e acompanhou o conde à sua casa.
Dez ou doze dias depois deste estranho acontecimento, um estafeta do exército comunicava ao meu avô, entre outras coisas, a morte do general V… Naquela madrugada em que o conde Orloff o tinha visto e ouvido, o infeliz general, saindo a estudar a posição do inimigo, foi varado por uma bala e caiu morto.
“Existe um inferno, e eu lá estou…”
Eis as palavras de um que veio do outro mundo!
O segundo fato é referido pelo mesmo autor, que o tem por indubitável, como o precedente, pois o ouviu da bôca de um repeitabilíssimo eclesiástico, superior de importante comunidade, o qual por sua vez, soube os pormenores mediante um parente da senhora, com a qual se deu tal fato. Naquele tempo, isto é, por ocasião do Natal de 1859, ela ainda vivia e contava pouco mais de quarenta anos.
Achava-se essa dama em Londres no inverno de 1847 e 1848; enviuvara aos 29 anos, era muito rica e muito amiga dos divertimentos mundanos. Entre as pessoas elegantes que freqüentavam a sua casa, notava-se especialmente um moço, cujas contínuas visitas a comprometiam não pouco e cuja vida estava longe de ser edificante.
Uma noite, a senhora lia não sei que romance para conciliar o sono. Ouvindo bater o relógio, apagou a vela e dispunha-se para deitar, quando percebeu, com grande assombro, que uma luz estranha e pálida vinha da porta do salão contiguo e espalhava-se a pouco e pouco no quarto, aumentando sempre. Não sabendo o que era, do pasmo passou ao mêdo; eis senão quando, viu abrir-se lentamente a porta do salão e entrar no quarto o jovem desregrado, o qual, antes que ela pudesse pronunciar palavra, aproximou-se, tomando-a pelo braço esquerdo, apertando-lhe fortemente o pulso, e com aceno desesperado, lhe falou em inglês:
– Existe o inferno!
Foi tão grande o susto que a senhora perdeu os sentidos. Voltando a si, tocou nervosamente a campainha para chamar a criada, que a tendeu; entrando no quarto, esta sentiu logo um cheiro de queimado e chegando-se à ama, que com dificuldade articulava umas palavras pôde ver que tinha ao redor do pulso uma queimadura tão profunda que a carne desaparecera e ficava à mostra o osso. Observou além disso, que da porta do salão até o leito e do leito à porta do salão estava impressa a pegada de um homem, que tinha queimado o pano de parte a parte. Por ordem da ama, abriu a porta do salão, e notou que lá terminavam as pegadas no tapete.
No dia seguinte, a desditosa senhora soube com aquele mêdo que bem se compreende, que alta noite, o tal moço se embriagara com excesso, e transportado para casa, veio a morrer pouco depois.
Ignoro, acrescenta o superior, se esta terrível lição tenha convertido a infeliz dama; o que sei é que ela ainda vive e para esconder aos olhares curiosos o sinal daquela sinistra queimadura, leva no pulso, à guisa de bracelete, um largo enfeite de ouro, que não deixa nem de dia nem de noite. Repito que os particulares eu os tive da bôca de um seu parente próximo, católico sincero, a cuja palavra presto fé. Os parentes não falam do ocorrido e é por isso que tenho o cuidado de ocultar o nome da família.
Apesar do véu, no qual esta aparição foi e deveu ser envolvida, não me parece, acrescenta Monsenhor Ségur, que se possa pôr em dúvida a formidável autenticidade.
O terceiro fato aconteceu na Itália.
Em 1873, em Roma, alguns dias antes da Assunção, uma moça, bastante má, machucou uma das mãos. Levaram-na para o Hospital da Consolação. Ou porque o sangue estivesse muito deteriorado ou porque sobreviesse grave complicação, a infeliz morreu naquela noite. No mesmo instante uma de suas companheiras, que não sabia o que acontecera no hospital, pôs-se a gritar desesperadamente, a tal ponto que acordou tôda a vizinhança e provocou a intervenção da polícia.
A companheira que morrera no hospital apareceu envolvida em chamas e lhe disse:
–“Estou condenada, e se não queres condenar-te também, sai deste lugar infame e volta a Deus.”
Nada consegui acalmar a agitação da jovem, que bem cedo abandonou aquela casa, deixando a todos atônitos, especialmente depois de divulgada a notícia da morte da companheira, no hospital. Aconteceu que, logo depois, a proprietária da casa, uma garibaldina exaltada, caiu doente, mandou logo chamar um padre, dizendo que queria receber os sacramentos. A Autoridade Eclesiástica delegou para êsse fim um digno sacerdote, Monsenhor Piroli, pároco de S. Salvador em Laura. Munido de especiais instruções, êle se apresentou e exigiu, antes de tudo, que a doente fizesse, perante testemunhas, plena retratação de suas blasfêmias e insultos contra o Sumo Pontífice e declarasse que afastaria as ocasiões de pecado. Sem a menor hesitação, a infeliz promete e então se confessa e recebe o Sagrado Viático com grandes sentimentos de penitência e humildade.
Pressentindo o seu fim, a pobre mulher, com lágrimas nos olhos suplicou ao padre que não a abandonasse, amedrontada como estava por aquela aparição. Assim, teve a grande graça de ser assistida nos últimos momentos pelo ministro de Deus.
Tôda a Roma conheceu logo os particulares desta tragédia.
Como sempre, os ímpios e os libertinos fizeram dela objeto de chacota, abstendo-se, à aposta, de obter oportunas informações; mas, de sua parte, os bons aproveitaram para se tornarem melhores e mais exatos no cumprimento de seus deveres.

CAPÍTULO II


A razão humana confirma a existência do inferno

Quem são afinal, os que negam a existência do inferno? Talvez pessoas honestas? Ao contrário! São os libertinos que espezinham todo o ditame da consciência para viverem à solta, aqueles aos quais repugna crer em um Deus vingador, por bem saberem que merecem seus castigos.

Conseguem êles persuadir-se de que não há uma justiça que vela sôbre os homens, e que punirá seus pecados? Jamais! Enquanto negam com os lábios a existência do inferno, sentem no âmago da consciência o remorso e uma voz que lhes anuncia terrível vingança.

O próprio Voltaire, o corifeu da impiedade, não conseguiu convencer-se de que não há nada depois do túmulo; tanto assim que, quando adoecia gravemente, apressava-se para em chamar o padre para se retratar de suas máximas tão ímpias!

Deus imprimiu em nosso coração noções imutáveis de justiça, e a idéia de um prêmio à virtude, de um castigo ao vício. Certo ímpio se vangloriava, numa roda, de não acreditar no inferno; entre os que ouviam estava um homem de bom senso e modesto, mas que julgou seu dever tapar a bôca ao estulto interlocutor, e o fez com êste simplicíssimo argumento:

– “Senhor, disse-lhe, os reis da terra têm cárceres para punir rebeldes; o Deus, Rei do universo, não há de ter cárceres para os que ultrajam a sua majestade?” O ímpio não soube que responder, pois o mesmo lume da razão lhe fazia ver que se os reis têm prisões, Deus deve ter um inferno.

Da negação do castigo e do prêmio ia outra vida, seguir-se-ia que Deus não existe, ou se existe, não cuida dos homens; e não haveria nenhuma diferença entre virtude e vício, entre justiça e injustiça. Morre um ladrão, carregado de delitos, e morre um inocente que durante a vida praticou virtude e fez o bem ao próximo; quereis que tenham a mesma sorte? Deus, infinitamente justo, não há de punir os crimes do primeiro e recompensar as boas obras do segundo? Morre São Paulo no deserto, depois de ter vivido quase um século no jejum, na penitência, louvando e servindo a Deus; e morre Nero, depois de ter cometido tôda espécie de crueldade; quereis que tenham igual sorte? Portanto, a mesma razão, o bom senso nos fala de um lugar onde serão castigadas as transgressões da lei divina.

Nem mesmo a eternidade das penas repugna aos ditames da reta razão.

Um dia, uma alma santa meditava no inferno, e considerando a eternidade dos suplícios, aquêle terrível nunca e o terrível sempre, ficou bastante impressionada, porque não compreendia como se pudesse conciliar esta severidade sem medida com a bondade e outras perfeições divinas.

– Senhor, dizia ela, eu me submeto aos vossos juízos, mas, permití-me, não sejais demasiado rigoroso.

– Compreendes, foi a resposta, o que seja o pecado? Pecar é dizer a Deus: não Vos obedecerei; pouco se me dá da vossa lei; rio-me das vossas ameaças!

– Vejo, Senhor, como o pecado é um monstruoso ultraja à vossa divina majestade.

– Pois bem, mede, se podes a grandeza dêsse ultraje.

– Compreendo, Senhor, que êsse ultraje é infinito, porque vai contra a majestade infinita.

– Não se exige então um castigo infinito? quanto à intensidade, sendo a criatura limitada, requer a justiça que seja infinito ao menos quanto à duração: portanto, é a mesma justiça divina que exige o terrível sempre e o terrível nunca. Os próprios condenados serão obrigados a prestar homenagens, mau grado seu, a esta justiça e exclamar em meio aos tormentos: “Vós sois justo, Senhor, e retos os vossos juízos.” (1)

Mas, replicam os incrédulos, Deus é tão misericordioso que não castigará eternamente um pecado mortal só, o qual às vezes dura um instante. Que proporção há entre a breve duração da culpa e a eternidade da pena?

A isto responderemos, que a misericórdia não é nada contrária à justiça, a qual exige seja eternamente castigado o pecado de uma pessoa que tenha morrido impenitente; visto que o pecado de tal pessoa é de certo modo eterno, segundo a sua voluntária disposição presente, querendo morrer no pecado: o que merece uma pena eterna. Até a justiça humana, imagem da justiça divina, castiga por vezes a falta passageira com a pena, a seu modo, eterna, como é o exílio perpétuo; de modo que, se o exilado vivesse sempre, para sempre seria banido da sua pátria. E por que a divina justiça não poderá banir eternamente da pátria celeste um pecador impenitente, que por si mesmo se exclui dessa pátria, morrendo voluntàriamente na impenitência final? De resto, eterno é o prêmio que Deus prepara a quem o serve, e por isso eterno deve ser também o castigo para aqueles que se rebelam contra sua santa lei.

Afinal, quem somos nós que ousamos levantar a fronte e pedir a Deus a razão de seus justos decretos?

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