Semana passada, um amigo gentilmente me cedeu um livreto, publicado em 1990, com uma entrevista concedida por Dom José Cardoso Sobrinho, Arcebispo de Olinda e Recife, ao Jornal do Commercio. A entrevista, feita pelo jornalista Ivanildo Sampaio, é uma preciosidade: ela deixa claro como D. José sempre tem uma noção muito clara de tudo que acontece à sua volta (mesmo em meio à turbulência). Por ser um tanto quanto extensa , falta-me tempo para transcrevê-la na íntegra. Decidi, então, postá-la em partes (no máximo 3). Aqui vai a primeira parte:

 

            JC: Depois dos papas João XXIII e Paulo VI, dois homens que revolucionaram a estrutura da Igreja Católica, parece ter havido no Colégio de Cardeais, a preocupação com a escolha do Pastor. Com a escolha de um Papa que fosse eminentemente Pastor. Elegeu-se o Cardeal Albino Luciani, que tomou o nome de João Paulo I, mas que teve um dos mais curtos papados da história. Veio João Paulo II, outro pastor. Isso significa que a Igreja entendeu ter havido um avanço muito grande com os dois Papa anteriores e que era chegado o momento de parar um pouco para a rearrumação da Casa?

            Dom José: Normalmente não acontece uma mudança brusca na vida da Igreja com a passagem de um papa para outro. Podemos dizer que o século XX foi privilegiado no que diz respeito ao Papado. Homens de estrutura espiritual gigantesca ocuparam a cátedra de Pedro e mereceram o respeito e admiração de todos os povos: Um Leão XIII, Um Pio X – elevado à honra dos altares como São Pio X – e todos os demais Papas deste século. Costuma-se contrapor o Concílio Vaticano II ao Papa Pio XII. Entretanto, quem se der ao trabalho de estudar a fundo os documentos do Vaticano II vai encontrar lá a presença viva de Pio XII cujos discursos são frequentemente citados pelo mesmo Concílio. Ele foi um grande intelectual, mas simultaneamente um Pastor eminente, mandado por Deus no momento justo para segurar o timão da barca de Pedro durante a procela a Segunda Guerra Mundial. Durante os 25 anos vividos em Roma, tive o privilégio de acompanhar de perto a eleição de quatro Papas. Durante a celebração de cada Conclave, temos a impressão de poder tocar com a mão a atuação viva do Espírito Santo. Sente-se realmente a presença de Deus, que escolhe o homem certo para a época certa. Quando Pio XII morreu, depois de ter servido a Igreja por mais de 19 anos, os católicos se sentiram órfãos, tal a veneração que lhes inspirava a figura daquele Papa. Havia, durante aquele interregno, uma incerteza, quase uma apreensão: quem estaria em condições de suceder à gigantesca figura do Papa Pacelli? Quem haveria de continuar a sua obra? Foi convocado o Conclave e, para a surpresa de todos, a escolha caiu sobre o humilde Cardeal Agnelo Giuseppe Roncalli que tomou o nome de João XXIII. Hoje temos João Paulo II, que certamente recebeu influência do brevíssimo pontificado de seu predecessor imediato, até na escolha do nome. Ele está vivendo sua época, seguindo esta peregrinação normal da Igreja, guiado certamente pelas mãos de Deus.

              JC: A seu ver, quais os maiores problemas enfrentados hoje pela Igreja Católica no mundo?

             Dom José: A igreja já enfrentou antes períodos de crises muito mais profundas do que vive hoje. Pode-se dizer que a crise atual não é a mais grave na história da Igreja. O Concílio Vaticano II produziu um documento completo sobre a natureza da Igreja. Esse documento, intitulado “Lumen Gentium” (“Luz dos Povos”),mostra que a Igreja está no mundo para ser a Luz. Ela existe para transformar a sociedade, para dar o bom exemplo – mas como é composta de homens, nem sempre é perfeita. Hoje, nós nos ressentimos da falta de vocações sacerdotais, um problema sério vivido pela Igreja no mundo. A questão da autoridade é outro problema. A não aceitação da autoridade dos superiores traz um desgaste muito grande. Nenhuma sociedade organizada sobrevive sem o princípio da autoridade. Na crise mundial que afeta a Igreja deve ser colocado também o problema da Doutrina, a questão da transmissão fiel do patrimônio doutrinal que vem de Jesus Cristo e dos apóstolos.

             JC: Existe, hoje, um choque entre conservadores e progressistas na Igreja?

             Dom José: A Igreja, em todas as épocas, sempre acolheu  diversas tendências doutrinais, salvaguardando o patrimônio da Fé, ou seja, aquelas verdades que já foram proclamadas por ato definitivo. O pluralismo de idéias é perfeitamente legítimo dentro da Igreja. Em todas as épocas sempre houve diversas escolas teológicas. Teólogos eminentes e até santos às vezes divergiam sobre a interpretação se vários pontos da Revelação. Um caso famoso é o da controvérsia sobre a Imaculada Conceição de Nossa Senhora. Durante séculos, teólogos de renome rejeitavam esta doutrina, a qual finalmente, em 1854, foi definida pela Igreja como Dogma de Fé. As legítimas controvérsias estimularam as pesquisas e nos levam a conhecer melhor as riquezas insondáveis dos mistérios da nossa Religião. Quem estudou Teologia, mesmo nas décadas anteriores ao Concílio, estava habituado a deparar-se com vários opiniões – as famosas sententiae – a respeito de cada tese teológica. Seguir uma determinada opinião ou corrente teológica não significa desprezar o defensor da opinião contrária. Esta liberdade de pesquisa pode e deve coexistir com a perfeita comunhão eclesial, a qual exige que, na prática pastoral, sejam acatadas as diretrizes daqueles que foram colocados pelo Espírito Santo para regerem a Igreja de Deus. As dificuldades começam quando alguns tentam impor, pela força, suas opiniões, contrariando as legítimas decisões da autoridade.

           JC: Dom José, vamos falar um pouco da Igreja Local. Dos problemas que o senhor tem enfrentado na Arquidiocese de Olinda e Recife, especialmente junto à chamada ala progressista do clero. A Igreja local está dividida?

            Dom José: Não se pode falar em divisão no sentido estrito da palavra. Divisão pressupõe um cisma. Isso nunca houve e, se Deus quiser, jamais acontecerá. Agora, é público e notório que há desentendimentos na Arquidiocese, embora eu espere que sejam superados o quanto antes.

               JC: E como surgiram estes desentendimentos?

               Dom José: Um dos fatores que muito contribuíram para isso foi o modo de agir de alguns sacerdotes. Desde quando eles colocaram em praça pública aquilo que deveria ser tratada intramuros, através do diálogo e do entendimento. Desentendimentos entre um padre e o seu bispo são comuns; – incomum é não procurar resolvê-lo pelo diálogo. Sempre que surgiram esses desentendimentos, o meu primeiro passo foi chamar o interessado à minha residência, conversar com ele, ponderar, ouvir, dialogar. Os sacerdotes que hoje estão nos jornais falando contra o seu bispo, todos eles, sem exceção, foram convocados antes para um diálogo. Algumas vezes o problema desses sacerdotes foi discutido com meus assessores, mas sempre em âmbito religioso, para que muitas coisas fossem resolvidas sem escândalo público. E eu lamento muito que alguns desses sacerdotes, assacando inverdades contra o Arcebispo, tenham recorrido à Imprensa para tornar público aquilo que deveria ser resolvido sigilosamente. Se uma carta é dirigida a você, não é pelos jornais que você deve tomar conhecimento das cartas que me eram dirigidas por estes padres através dos jornais. Esse método eu não aceito, porque não é justo. O Arcebispo tem direito à sua privacidade. A divulgação antecipada das cartas através dos jornais passa à opinião pública uma imagem do Arcebispo que não corresponde à verdade. Assim como foram igualmente divulgadas pelo jornal versões que estão muito longe daquilo que realmente aconteceu.